Viva Restinga
2022
O projeto Viva Restinga busca a utilização transversal de uma série de instrumentos e fontes de financiamento para a criação de um rede sócio-estrutural de sistemas agro-ecológicose comunitários vinculados digitalmente, incluindo temas de mobilidade, espações públicos parâmetros de edificação, participação, inovação, habitação social e economia circular. Neste projeto testamos a hipótese de que as estruturas de financiamento e os instrumentos de planeamento urbano, quando aplicados com uma abordagem ecológica expandida (incluindo não só as dimensões ambiental, mas também tecnológica, social e econômica), podem ser ferramentas para a inversão do cenário de segregação sócio-espacial e de degradação ambiental, ao mesmo tempo que fortalecendo as relações comunitárias.
Crise urbana, ambiental e social
Antropoceno é a denominação da época geológica que considera que a humanidade atua como uma força planetária capaz de modificar a Terra drasticamente, levando a mudanças geológicas, climáticas, ecossistêmicas e até mesmo no curso da evolução das espécies. Paradoxalmente, o antropoceno é representado não apenas pela incessante interferência da humanidade sobre o planeta, mas também pelo surgimento da consciência ecológica: a autoconsciência humana destas interferências e suas consequências. Timothy Morton, um dos principais teóricos do Antropoceno, explica que a consciência ecológica “é o momento em que os narradores descobrem que são os trágicos criminosos” (Morton, 2016). Para Félix Guattari, as crises ecológicas que ameaçam nosso planeta são o resultado direto das transformações técnico-científicas, desenvolvidas de forma acrítica e portanto causadoras de desequilíbrios ecológicos e deterioração do modo de vida humano. A deterioração e descaracterização, porém, não são apenas do meio ambiente, mas do meio social e das subjetividades individuais (Guattari, 2007). Deste modo, parece que vivemos, simultaneamente, uma crise ecológica entre os humanos e não-humanos e uma crise da humanidade consigo mesma, refletida nas contradições da globalização, como a desigualdade social e a incapacidade de distribuir de maneira equilibrada as benesses do progresso material.
Em paralelo à crise climática, uma outra crise assola cidades em todo mundo, com especial intensidade na América Latina: a crise urbana e social. No Brasil, o processo histórico de urbanização ilustra o pensamento de Manuel Castells de que o espaço urbano é produto da ideologia da classe dominante. O cenário atual de exclusão social, segregação territorial e desigual distribuição dos serviços públicos e equipamentos é a prova viva disto. No período de 1960 a 1980, com a explosão da urbanização, o planejamento urbano esteve à serviço da ideologia que se espelhava em padrões europeus como a Paris de Haussmann, colocando em curso políticas de embelezamento e higienização dos centros urbanos. Esta ideologia alimentou o processo de periferização e produção da cidade informal, fazendo com que a cidade brasileira ficasse marcada pela modernização incompleta ou excludente (Maricato, 2002).
O processo histórico de urbanização no Brasil gerou um cenário de segregação socioespacial, no qual os bairros periféricos de baixa renda são muitas vezes invisibilizados e negligenciados pelo poder público, transformando-se em territórios isolados, desprovidos de investimentos e altamente dependentes das áreas centrais (Maricato, 2002). Nesses cenários, as vulnerabilidades ambientais e socioeconômicas se sobrepõem e se intensificam diante das crises urbanas locais e da crise climática global do antropoceno, tornando imperativa a adoção de estratégias de sustentabilidade e equidade social.
Ecologia expandida
O conceito de Ecologia Expandida que este estudo busca desenvolver parte da ampliação do conceito tradicional de ecologia de modo a incluir temas urbanísticos, econômicos, políticos, ambientais, sociais, culturais e tecnológicos de forma transversal. Ao mesmo tempo que alinha-se com o entendimento do buen vivir – no qual entende-se a relacionalidade e a complementaridade entre todos os componentes humanos e não humanos do meio em que vivemos – também inspira-se no pensamento de Guattari, que apresenta uma abordagem ecosófica que respeita as diferenças entre todos os sistemas vivos. Para o planejamento urbano, área de atuação na qual este estudo de caso desenvolve propostas, a abordagem ecológica expandida significa incluir não apenas a dimensão meio ambiental nos projetos urbanos, mas também a tecnológica, a social e a econômica de forma integrada. Esta nova forma de interpretar a ecologia pode favorecer a releitura de estruturas de financiamento e instrumentos de planejamento urbano, de modo a transformá-los em ferramentas para reverter o cenário de segregação sócio-espacial e degradação ambiental, fortalecendo as relações comunitárias. A pesquisa parte de uma pergunta:
"Como as estruturas de financiamento e os instrumentos de planejamento urbano podem contribuir para a autonomia da Restinga, para equilibrar sua relação com o restante da cidade e do meio ambiente, integrar as experiências humanas e não humanas, potencializando a subjetividade locais? "
Estudo de caso: Restinga, Porto Alegre/RS
O contexto do estudo de caso reúne os problemas que conformam o tema da tese, uma vez que trata-se de um bairro que ilustra a crise urbana e social na cidade de Porto Alegre, devido à sua segregação socioterritorial, além de ser um estudo de caso fortuito para temas associados à crise climática e abordagem ecológica, pois encontra-se na periferia da cidade, limite entre o ambiente urbano consolidado e as áreas verdes remanescentes do município, em pela expansão da fronteira da urbanização e consequente descaracterização das áreas naturais. Ao mesmo tempo, a localidade, por sua condição de isolamento físico e forte orgulho comunitário, apresenta uma oportunidade de exploração de formas de autonomia e autossuficiência.
A Restinga é um bairro periférico da cidade de Porto Alegre, Brasil, que tem a sua origem em um processo de saneamento da região do centro de Porto Alegre, na década de 1960 e que também recebeu um grande volume de novos residentes advindos do fenômeno de êxodo rural nas décadas de 1970 e 1980.
O local escolhido pelo planejamento urbano da época para abrigar essa população foi um vale atrás da serra da cidade, bem distante do centro. Dessa forma, o bairro consolidou-se como uma área urbanizada isolada, bastante desconectada da malha viária da cidade e inserida em meio a áreas de vegetação nativa e áreas rurais.
Esta história também se reflete nas características da população: é um bairro muito povoado, com uma taxa de crescimento demográfico superior à média da cidade; com uma maioria de famílias baixa renda; além de possuir taxas mais elevadas de população negra, o que consolida esse cenário de segregação sócio-espacial. A segregação socioespacial também se manifesta na exclusão digital do bairro e na falta de oportunidades de emprego local, gerando uma dependência do centro da cidade.
Embora este processo de segregação sócio-territorial tenha refletido, por um lado, a estigmatização dos moradores do bairro, por outro, está na origem do surgimento de um forte orgulho comunitário, expresso pelo lema “Tinga, o teu povo ama-te”. .” (Stephanou, 2020). Este envolvimento comunitário reflete-se na profusão de projetos sociais, associações comunitárias e grupos culturais existentes no bairro.
Projeto Viva Restinga
O Projeto Viva Restinga é um conjunto de intervenções e medidas a partir de uma abordagem urbanística de Ecologia Expandida, que vincula ações de cunho urbanístico, tecnológico, social, ambiental, político e financeiro. O projeto tem como finalidade a transformação urbanística do bairro da Restinga, mediante indução de uma forma urbana mais compacta, provisão de infraestrutura digital e produtiva, reestruturação da mobilidade e fomento à arquitetura biodegradável. Os efeitos esperados são o fortalecimento do senso de comunidade, a criação de uma rede local de produção e consumo e a geração de capital simbólico para o bairro. O projeto aborda, de forma transversal, temas de participação cidadã, economia circular, habitação e financiamento tradicional e alternativo.
A partir da delimitação do âmbito do projeto e do diagnóstico realizado, foram elaboradas 7 estratégias: fomentar a economia local; conectar para fora; adaptar a forma urbana; integrar paisagens; reestruturar a mobilidade; aumentar o capital simbólico e reduzir a pegada ecológica. Estas estratégias se articulam entre si dando origem às propostas.
i. Vinculação de normativas
Associada às estratégias de adaptar a forma urbana e reduzir a pegada ecológica, a densificação estratégica da área urbana da Restinga parte de dois pressupostos básicos: primeiramente, que a expansão das manchas urbanas é uma das formas de degradação ambiental mais expressivas causadas pelo fenômeno da urbanização; e que a maior densidade de habitações junto às áreas centrais dotadas de infraestrutura favorece o acesso a equipamentos e serviços (Calthorpe, 1993), favorecendo o direito à cidade. Para viabilizar a densificação de forma estratégica, é necessário estabelecer parâmetros e mecanismos. O primeiro parâmetro a ser definido é um zoneamento que define as áreas aptas a receber densificação. Para elaboração deste zoneamento, foram utilizados como critérios a proximidade à infraestrutura de transporte e a presença de vazios urbanos, mapeados e processados por meio do método de álgebra de mapas. O zoneamento utiliza uma base hexagonal na qual cada célula representa uma unidade de planejamento com parâmetros específicos.
A proposta de densificação mediante edificabilidade concedida ou adquirida inspira-se na premissa de “mudar as regras do jogo”, da Economia Azul (Pauli, 2010), ao aplicar a lógica do instrumento da Outorga Onerosa do Direito de Construir sob uma perspectiva inovadora, visando ampliar sua aplicação para incluir não apenas a recuperação da mais valia fundiária, a captação de recursos e a indução da densificação em áreas específicas, mas também o incentivo a certos parâmetros desejados, favorecendo projetos que contribuam com mais qualidade urbanística para o bairro.
O efeito esperado dessas medidas é a densificação do eixo principal de transporte, melhorias no ambiente urbano e no microclima, arrecadação de recursos para investimentos locais, combate à especulação imobiliária, combate à gentrificação e ampliação da oferta de habitação social.
ii. Entrelaçamento de conectividades
Relacionada às estratégias de fomentar a economia local, conectar para fora, integrar paisagens, reestruturar a mobilidade, aumentar o capital simbólico e reduzir a pegada ecológica, a proposta de entrelaçamento de conectividades engloba medidas de integração entre equipamentos existentes e propostos, reestruturação da mobilidade local, além da provisão de infraestrutura digital. A proposta busca identificar e potencializar a vocação do bairro, "aproveitando o que há disponível localmente", uma premissa da Economia Azul (Pauli, 2010). É elaborada uma relação de circularidade entre os equipamentos existentes e propostos no que diz respeito ao consumo de recursos e disposição de resíduos. Os equipamentos propostos são hortas urbanas comunitárias nos espaços públicos abandonados, uma usina de biogás e um centro de produção de fertilizantes. As hortas comunitárias, além de proporcionar geração de alimentos a quilômetro zero e interação comunitária, podem constituir uma rede de produção agroecológica em parceria com os produtores rurais do entorno do bairro. A produção de alimentos orgânicos pode ser destinada parte para os trabalhadores da iniciativa e parte para venda na feira semanal do bairro. A mobilidade urbana do bairro é reestruturada, tendo como foco a conectividade entre equipamentos e espaços públicos. Devido à estrutura urbana predominantemente ortogonal do bairro, foi possível adotar um esquema inspirado no modelo das superilles de Barcelona, com a definição de vias principais e vias locais conformando superquadras. Além das superquadras, a via arterial que corta o bairro e representa o principal acesso do bairro é mantida como eixo estruturante, valendo-se de premissas de Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável - DOTS (Calthorpe, 1993).
iii. Interconexão comunitária
A proposta de interconexão comunitária inclui medidas de caráter imaterial para o bairro, associadas às estratégias de fomentar a economia local, conectar para fora e aumentar o capital simbólico. Esta proposta inclui a criação de uma moeda social local, a Tinga, além da proposição de um calendário de eventos e a instauração de novas formas de participação. A criação da moeda social local Tinga se apoia na experiência das mais de 100 moedas sociais existentes no Brasil. As moedas sociais são um tipo de tecnologia social que atua especialmente em territórios caracterizados por um alto grau de exclusão social e desigualdade, com potencial de desempenhar papel importante no processo de desenvolvimento local e na solução de problemas econômicos (Rigo and Ventura, 2019). A Tinga é uma moeda que possui paridade com o Real, circulante apenas dentro do perímetro do bairro, com o objetivo de fomentar a rede local de produção e consumo. Esta moeda é gerida por um banco comunitário e pode oferecer linhas de crédito em reais ou em Tingas. Os critérios de concessão de crédito devem estar associados à utilidade pública e social das práticas e aos objetivos do Projeto Viva Restinga como um todo, ou seja, o banco comunitário pode oferecer linhas de crédito agroecológico (para produtores locais e para instalação de hortas urbanas), crédito para reformas (para conversão de edifícios existentes em função de melhorias bioclimáticas e ecológicas), crédito habitacional (para financiamento de habitação social) e crédito para projetos sociais, microempreendedorismo e para economia circular.
CONCLUSÕES
A participação comunitária é um elemento chave que permeia todas as propostas descritas anteriormente, dando sentido a elas. O Projeto Viva Restinga prevê uma série de instâncias de participação que abrem espaço para discussão e compartilhamento comunitário, como o financiamento participativo de projetos, a inclusão digital e a moeda social circulante local, a Tinga. Além disso, os instrumentos do Estatuto da Cidade propostos já prevêem o componente participativo em sua implementação e gestão. O acesso à rede pública de 5G, mediante cadastro, ajuda a alimentar uma base de dados multifinalitária do bairro, cuja existência é fundamental para a aplicação dos instrumentos propostos e permite transparência e controle social. Ainda, a estrutura do projeto permite formas de participação alternativa como a participação remunerada, que pode oferecer uma pequena contribuição em Tingas como contrapartida às contribuições.
O financiamento das ações do projeto é concebido de modo a depender o mínimo possível de investimentos externos e verbas federais. Buscou-se a possibilidade de geração de recursos internamente ao projeto, seja por meio dos instrumentos de gestão do uso do solo (OODC e IPTU progressivo), seja pela venda de excedentes produzidos localmente (biogás, insumos para reciclagem, produtos agroecológicos, etc) ou pela promoção de iniciativas de financiamento coletivo. Estes recursos são encaminhados para o Fundo Restinga, um fundo local que pode servir para prover linhas de crédito a iniciativas relacionadas aos objetivos do projeto, como crédito agroecológico, crédito para reconversão ecológica de edifícios existentes, crédito para aquisição de moradia de interesse social, bem como para execução de projetos de infraestrutura. O Fundo Restinga funciona de maneira local e independente, captando recursos através das medidas propostas no âmbito do projeto e aplicando-os localmente, de maneira transversal às fontes de financiamento tradicionais existentes. Projetos de maior porte pode também receber aportes financeiros de fontes externas ao projeto, seja via programas do Governo Federal ou linhas de atuação de instituições de fomento ao desenvolvimento, como o Banco Mundial, enquanto projetos mais específicos e de menor porte podem ser apoiados por práticas de financiamento alternativo como o crowdfunding. Os serviços públicos essenciais para o pleno funcionamento do projeto podem ser executados via Associações Público Privadas.